A expressão interculturalidade se encontra amplamente difundida nos enunciados envolvendo a controvérsia sobre indígenas no ensino superior brasileiro, e está presente com intensidade semelhante no contexto mais amplo de debates referentes à educação escolar indígena na América Latina e em determinados contextos de educação para populações imigrantes de países da Europa.
O termo intercultural apresenta uma considerável polissemia na ampla gama de registros inseridos nesses diferentes contextos históricos em que foi utilizado (para uma descrição das origens e modalidades de uso do termo interculturalidade, recomendamos o texto de Collet de 2006, disponível no item Documentos).
Mesmo possuindo um sentido variável e nem sempre reconhecivelmente bem delimitado, o emprego do termo na presente controvérsia parece indicar mais regularmente para certa necessidade de complementar o idioma multiculturalista, em que se assenta parcialmente a pauta do debate, com novas nuances capazes de superar alguns dos dilemas e impasses a que essa cosmologia poderia conduzir as discussões. A operacionalização recorrente da lógica da interculturalidade pode ser considerada, desse modo, como uma outra movimentação “cosmopolítica” da controvérsia, a abertura da caixa-preta da cosmologia multiculturalista.
O princípio da interculturalidade não implica em simplesmente reconhecer o valor de cada uma dessas culturas e defender o respeito entre elas. Mais que isso, a interculturalidade apresenta-se como um princípio que fornece elementos consistentes que permitem provocar o desvelamento, o enfrentamento e a posterior busca de soluções para os conflitos desse relacionamento, em todas as suas dimensões. (CARVALHO & CARAVALHO, 2008)
Neste trecho, os professores Fabíola Carvalho e Fabio Almeida de Carvalho do Núcleo Insikiran de Formação Indígena da UFRR, expõem o princípio de interculturalidade que norteia o curso de licenciatura indígena oferecido na universidade. Os autores do fragmento caracterizam este princípio como um “passo adiante” ao patamar de reconhecimento das diferenças e tolerância entre culturas: a interculturalidade consiste num avanço para se pensar as relações e os “conflitos” entre as “culturas” postas em relação. A inflexão sugerida acima expressa a principal proposição dos programas interculturais: a problematização das relações e da interação entre as diferentes coletividades, para além de uma constatação do valor auto-suficiente e da convivência estanque entre culturas. Assim, a partir dos esforços do programa cosmopolítico da interculturalidade, o combate ao paradigma da assimilação e da inserção indiferenciada na educação pública será complementado com um conjunto de palavras e expressões que tentam qualificar ou dar sentido à relação entre culturas: em adição a palavras como tolerância, respeito, autonomia, serão veiculadas expressões como diálogo, articulação, intercâmbio, transformação mútua, etc..
Embora possa se verificar essa característica também nas discussões sobre educação escolar indígenas nos níveis fundamental e básico, o “diálogo intercultural” ganha uma forma predominante nos debates sobre o ensino superior: a discussão acerca da relação entre conhecimentos científicos ou acadêmicos e conhecimentos indígenas ou “tradicionais”. Assim, em acréscimo ao reconhecimento da especificidade indígena enquanto coletividades possuidoras de direitos territoriais e lingüísticos específicos, a interculturalidade procura dar ênfase à relação entre diferenças de ordem epistemológica existentes entre as populações indígenas e a população nacional e a estrutura educacional estatal com a qual estas estabelecem relação.
A LI [licenciatura indígena] visa, por fim, propiciar uma formação para que os professores indígenas possam investigar e refletir sobre a situação e as condições históricas de suas comunidades e de seus povos para que, a partir disso, possam contribuir de forma mais consciente com o desenvolvimento destes. Desse modo, busca tanto valorizar os conhecimentos locais e tradicionais dos povos indígenas, quanto os conhecimentos tidos como necessários para que os povos indígenas possam ter êxito em seus projetos de sustentabilidade. Daí a importância da interculturalidade como princípio. (idem)
10. PERFIL DO PROFESSOR FORMADOR
• Apresentar sensibilidade com a discussão da identidade e da diferença, em especial, com as problemáticas contemporâneas vivenciadas pelos povos indígenas;
• Considerar e articular os saberes indígenas com os científicos objetivando a sustentabilidade das comunidades indígenas (…)”
“Projeto Pedagógico do curso de licenciatura em Educação Indígena” UFCG (2007)
Da interculturalidade, que articula conhecimentos e valores sócio-culturais distintos, de forma seletiva, crítica e reflexiva, sem hierarquia de valores.
“Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura Indígena” UFGD (2010)
Com efeito, a adição à gramática multiculturalista de princípios programáticos de interculturalidade introduz na meta de “inserção diferenciada” de indígenas em universidades a necessidade de reformular dimensões ligadas à estrutura de conhecimento das instituições de ensino superior. Isto para que se possa acolher de modo mais adequado a especificidade de tais populações. Tal necessidade se refletirá principalmente na formulação das modalidades de ação afirmativa correspondentes a criação de aportes administrativos e organizacionais para garantir a permanência de estudantes indígenas, a criação de cursos diferenciados com estrutura curricular e pedagógica específica (cujo principal exemplo, no Brasil, são as chamadas licenciaturas interculturais ou indígenas) e a criação de universidades indígenas, que seriam instituições de ensino como um todo diferenciadas.
“Diversas universidades públicas e comunitárias, atentas às demandas indígenas por ensino superior, desenvolvem experiências voltadas ao acesso diferenciado dos índios aos espaços acadêmicos. Porém, essas experiências sinalizam questões que vão além do debate em torno de cotas para atender as demandas por ensino superior desses e de outros segmentos, pois se trata de povos com saberes e processos sociais e históricos diferenciados.”
“Por isso, emerge como fundamental que ao pensar sobre o tema acesso e permanência de acadêmicos índios no ensino superior não se perca de vista que estão em discussão projetos de futuro de povos e não só de indivíduos. Sob a ótica dos povos indígenas e experiências em andamento o confirmam, a educação superior pode contribuir, significativamente, para criar melhores condições de sustentabilidade e autonomia das populações indígenas no Brasil. Exige, porém, das Universidades repensarem suas metodologias de ensino, superando a fragmentação e questionando o saber academicamente sedimentado, que perpassa e está subjacente em nossas práticas pedagógicas, objetivando o exercício constante da interculturalidade.
O espaço acadêmico, na atualidade, passa por tensões, decorrentes dos desafios em considerar o conhecimento a partir da diferença e de outras lógicas epistemológicas, não produzidas pela cultura ocidental, imposta como condição única de compreensão e concepção de mundo. O acesso e permanência de indígenas nas universidades gera instabilidades de cunho epistemológico e metodológico que dão consistência aos desafios de pensar questões tais como: culturas locais, culturas híbridas e globalização; o território acadêmico com as diversas formas de produção de conhecimento; a academia e a produção de conhecimento sobre as diferenças; a universidade como espaço público requisitado pelos índios como garantia de sustentabilidade étnica e de reelaboração de conhecimento a partir de lógicas de compreensão de mundo, que sejam âncoras para a produção de alternativas de sustentabilidade econômica.” (Trechos retirados do site do evento Povos Indígenas e a Sustentabilidade)
“Para mim, existe um dilema de difícil solução nesse empreendimento, que envolve a idéia de que, por ser algo do branco, os índios não podem querer tratamento diferenciado no processo de escolarização no ensino superior, restando-lhes tão-somente o enquadramento às suas estruturas, conteúdos e métodos estabelecidos. Não se trata de diferenciado como sinônimo de isolamento, mas, de espaço plural de convivência e de troca de experiências, conhecimentos e valores. (…) Neste sentido, o grande desafio é articular espaços acadêmicos que criem relações simétricas de produção e reprodução de conhecimentos, tendo como base o fato de que tanto os povos indígenas quanto universidades são portadores e disseminadores de conhecimentos milenares, que de diferentes, poderiam ser complementares, contribuindo definitivamente para o avanço e enriquecimento do conhecimento humano, em vista de soluções para os grandes problemas da vida humana e do planeta.” (Entrevista com Gersem Baniwa, 2006: 4)
“Os intelectuais indígenas têm bastante clareza de que se o acesso às universidades é importantíssimo e que as cotas podem servir como um instrumento valioso tanto para a situação de povos territorializados – ainda que muitos de seus integrantes estejam em trânsito permanente entre esses territórios e ambientes urbanos deles próximos ou distantes, ou que nesses territórios suas aldeias muitas vezes estejam adquirindo o perfil de cidades – quanto para aqueles que, muitas vezes motivados pela busca da educação, se deslocaram para os centros regionais ou mesmo para cidades distantes, como Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. (…) Mas cotas, no caso dos indígenas, não são suficientes sem mudanças muito mais amplas nas estruturas universitárias, de modo a que estas reflitam sobre suas práticas a partir da diferença étnica, de um olhar sobre quem se desloca de um mundo sociocultural e, em geral, lingüístico, totalmente distinto, ainda que os estudantes indígenas pareçam e sejam – uns mais outros menos – conhecedores de muito da vida brasileira. Não se trata stricto sensu de um único e mesmo preconceito, nem de uma única e mesma forma de discriminação que também no meio universitário atinge os indígenas, os afro-descendentes e os estudantes classificados como “pobres” rurais e urbanos, negros ou não (e regionalmente muito distintos). Não se trata, tampouco, como no caso dos afro-descendentes e da população de baixa renda, de incluir uma minoria (em termos de poder) de excluídos, dando-lhes acesso e controle aos mesmos instrumentos que historicamente têm servido à manutenção dos poderes das elites governantes no país, mas sim de rever as estruturas universitárias muito mais radicalmente. Ao incluir os indígenas nas universidades há que se repensar as carreiras universitárias, as disciplinas, abrir novas (e inovadoras) áreas de pesquisa, selecionar e repensar os conteúdos curriculares que têm sido ministrados e testar o quanto estruturas, que acabaram se tornando tão burocratizadas e centralizadoras, podem suportar se colocar ao serviço de coletividades vivas histórica e culturalmente diferenciadas.” (2007: 16-17)
Seminário Desafios para uma educação superior para os povos indígenas no Brasil. 2007. Antonio Carlos de Souza Lima e Maria Barroso Hoffmann (orgs.). (disponível em: http://www.trilhasdeconhecimentos.etc.br/livros/index.htm)
Como destacado no início, embora seja francamente operacionalizado para indicar o sentido que a conjugação entre as instituições escolares e a alteridade indígena deve assumir na controvérsia sobre ensino superior brasileiro, o lema da interculturalidade dificilmente vai além, nos documentos e registros consultados, da característica de uma aspiração ou principio abstrato que orienta os projetos de ação afirmativa para indígenas. Nos itens a seguir, acompanhamos algumas das tentativas dos atores de viabilizar com medidas práticas o programa da interculturalidade (“Tentativas de efetivação do princípio da Interculturalidade”) e indicamos alguns caminhos de reflexões para uma problematização desse princípio (“Sugestões de caminhos para refletir sobre a Interculturalidade”)
Abrindo a caixa-preta do Universalismo Civilizador: o Multiculturalismo.
Tentativas de efetivação do princípio da Interculturalidade
Sugestões de caminhos para refletir sobre a Interculturalidade
Fontes:
CARVALHO, Fabíola & CARVALHO, Fábio de Almeida. (2008), “A Experiência de Formação de Professores Indígenas do Núcleo Insikiran da Universidade Federal de Roraima”. In: MATO, Daniel (coord.) Diversidad Cultural e interculturalidad em educacíon superior. Experiencias em America Latina y el Caribe (IESALC). Caracas: Instituto Internacional de la UNESCO para la Educación Superior en América Latina y el Caribe (UNESCO-IESALC), pp. 157-166.
Entrevista com Gersem Baniwa. In: LABORATÓRIO DE POLÍTICAS PÚBLICAS – PROGRAMA POLÍTICAS DA COR NA EDUCAÇÃO BRASILEIRA – Nº 28 – AGOSTO/2006
LIMA, Antonio Carlos de Souza & HOFFMAN, M. B. (orgs.). (2007), Seminário Desafios para uma educação superior para os povos indígenas no Brasil.
“Projeto Pedagógico do curso de licenciatura em Educação Indígena” UFCG (2007)
“Projeto Pedagógico do Curso de Licenciatura Indígena” UFGD (2010)
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